Desse modo, conquanto respeitável a
manifestação do Procurador-Geral da República, não é possível atender a
recomendação de substituição do Projeto de Lei em questão, querendo
parecer, salvo melhor juízo, que a mesma encontra-se prejudicada por
falta de objeto. No entanto, registre-se que por não se cuidar de
espécie normativa qualificada como pétrea ou dotada de rigidez absoluta,
a Lei Complementar que virá a integrar a ordem jurídica estadual ao
cabo do processo legislativo em curso poderá receber correções e
aprimoramentos a qualquer tempo, a critério das autoridades
politicamente legitimadas. Nesse sentido, as considerações do eminente
Procurador-Geral da República guardam interesse e merecem detida
atenção.A legislação estadual em processo de
conclusão, data venia, não descumpre ou pretende resistir ao veredicto
do Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade
nº 4.270 e 3.892. Em primeiro lugar, por sua natureza declaratória,
típica dos processos objetivos do controle abstrato, bem como em
homenagem ao postulado da separação de poderes, a decisão da colenda
Suprema Corte não contém injunções concretas quanto ao conteúdo
específico do conjunto de normas a elaborar. Decerto, dela decorre a
imposição de substituição do modelo anteriormente vigente de prestação
indireta do serviço social de assistência jurídica aos necessitados,
declarado inconstitucional. Mas é exatamente em tal direção que dispõe o
legislador estadual quando, inclusive alterando a Constituição do
Estado, cria a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina,
órgão que passa a integrar a estrutura administrativa estadual e que
responderá pela orientação e pela defesa jurídica das pessoas de baixa
renda. Em segundo lugar, é da essência do processo legislativo na ordem
democrática que o legislador, no exercício de sua liberdade de
conformação jurídica, eleja critérios e promova escolhas no marco das
opções políticas existentes, bem como que considere, em suas decisões,
as limitações fáticas e jurídicas que restringem as possibilidades de
ação estatal. Tais escolhas políticas e decisões contingentes, apenas
porque podem contrariar interesses e aspirações, não devem ser
confundidas com recusa, menos ainda deliberada, de afrontar a Suprema
Corte.De qualquer sorte, relativamente aos aspectos
pontuais controvertidos no expediente do Exmo. Sr. Procurador-Geral da
República, impõe-se lançar algumas considerações que tanto podem ser
úteis para atualizar a informação disponível quanto para permitir uma
melhor avaliação das soluções legislativas questionadas.É
uma premissa da legislação estadual aprovada pela Assembleia
Legislativa do Estado a de que a substituição do modelo anterior de
prestação indireta do serviço público de assistência jurídica pelo novo,
de prestação direta, através da Defensoria Pública, não poderia ser
realizado de uma só vez, radicalmente. Tanto pressuporia a capacidade
estatal de implantação imediata de uma superestrutura apta a garantir a
universalidade do atendimento. Contudo, semelhante aptidão não existe, o
que se deve a uma série de obstáculos de ordem fática e jurídica. De um
lado (limitação fática), a vontade política do legislador está
condicionada pelo volume dos recursos disponíveis, num contexto em que a
receita, escassa, deve ser compartilhada para dar conta de obrigações
nas áreas de saúde, educação, segurança, saneamento, sistema prisional,
etc. De outro (limitação jurídica), há que atender ao imperativo de
respeito às regras de responsabilidade na gestão fiscal, bem como a
rigidez do direito administrativo, que submete às contratações feitas
pelo público a procedimentos licitatórios que demandam tempo. De notar
que, para cada unidade da Defensoria Pública a instalar, sem contar os
servidores concursados, são necessários prédios, computadores, veículos,
telefonia, internet, softwares, material de expediente, vigilância,
limpeza, etc. Outra premissa relevante, subjacente à novel legislação e
que se soma àquela precedente, é a de que o serviço de assistência
jurídica à população carente, dada a sua essencialidade e, mais do que
isso, dada a sua jusfundamentalidade, não admite interrupção e requer
total continuidade.Assim, pressuposta a impossibilidade
de operação inicial em nível ideal e com força máxima, e a fim de
assegurar tanto a continuidade do serviço como a universalidade do
atendimento, o legislador estadual previu a possibilidade de celebração
de convênios com órgãos e entidades, entre os quais a Ordem dos
Advogados do Brasil e os escritórios-modelo dos cursos de Direito das
Universidades. Sob o conceito normativo de suplementaridade ou
subsidiariedade, pretendeu-se dotar a Defensoria Pública de meios de
reforço à sua atuação no período de transição entre o modelo antigo e o
moderno. A referência feita particularmente à Ordem dos Advogados do
Brasil no projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo – que terminou
por ser suprimida do texto final - decorre do fato de a mesma já
possuir uma rede estruturada e organizada de profissionais cadastrados, o
que facilita a operacionalização do sistema auxiliar. Além disso, por
tratar-se de instituição respeitável, promotora da defesa dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais, sua cooperação com o poder
público revela-se compatível com os fins sociais do serviço social de
assistência jurídica. Cabe destacar que a legislação estadual faculta
ainda o emprego, como instrumentos de apoio à Defensoria Pública, do
credenciamento individual e do serviço voluntário (pro Bono), na forma
da legislação federal de regência. As modalidades de apoio assim
conferidas não implicam privatização, mas exprimem preocupação séria e
política sensata em favor de bens tutelados pela ordem constitucional
que, de outro modo, estariam ameaçados.Por sua vez, o
quantitativo de cargos foi fixado nos seguintes termos: 60 cargos de
Defensor Público, 50 cargos de servidores de nível superior e 40 cargos
de servidores de nível médio, totalizando 150. Todos os grupos estão
organizados em carreiras e serão remunerados através de subsídio. O
número é compatível com as necessidades estimadas para o início de
operação das 21 unidades regionais da Defensoria Pública,
estrategicamente posicionadas em todas as regiões do território
catarinense. Atendeu-se, também, na definição do quadro, a necessidade
de observar as imposições da lei de responsabilidade fiscal, evitando-se
o risco, não meramente retórico, de extrapolação dos limites prudencial
e de alerta em relação às despesas de pessoal da administração pública
estadual. Considerou-se, ainda, - e não tem sido percebida a relevância
desta motivação legal - que todas as projeções indicativas de
necessidade numérica superior estão baseadas em estatísticas atuais que
exprimem um cenário de conflitualidade que urgentemente precisa e poderá
ser debelado a médio prazo a partir de programas eficazes de redução de
litigiosidade. Se, para dar um único exemplo, o fornecimento de
medicamentos no país deixar de ser um problema abandonado à resolução
judicial (sob a forma de ações repetitivas), como razoavelmente se tem
de esperar, grande contingente dos serviços da Defensoria Pública
desaparecerá, e um quadro de servidores superestimado tornar-se-ia
ocioso, com custo inaceitável para a sociedade. A legislação estadual
faz uma aposta na reversão dos níveis de litigância, quase insanos, e
permite, para o futuro, ultrapassada a fase inicial de implantação da
Defensoria Pública, a acomodação das demandas de pessoal de acordo com a
observação e a experiência. Cabe destacar, por fim, que a limitação de
provimento de 20 cargos no primeiro concurso a realizar restou suprimida
do texto finalmente aprovado, com a concordância do Poder Executivo.A
propósito, é importante informar que, segundo consta, a Defensoria
Pública da União em Santa Catarina conta com apenas 10 Defensores
Públicos, sendo 8 lotados em Florianópolis e 2 lotados em Joinville.
Ambas as unidades estão situadas na faixa litorânea, e a imensa maioria
do território catarinense, inclusive os municípios que sediam Varas
Federais, não possui cobertura presencial. Não bastante, a Defensoria
Pública da União não possui quadro próprio de servidores, os quais
estão, ainda segundo consta, vinculados ao Ministério do Planejamento.
Na comparação, a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina
apresenta, já em sua formatação inicial, estrutura mais organizada,
potente e abrangente.Derradeiramente, cumpre
considerar que, pelos requisitos contidos na Lei Complementar Federal nº
80, de 12 de janeiro de 1994, os cargos de Defensor Público Geral,
Subdefensor Público Geral e Corregedor Geral, além dos membros do
Conselho Superior, devem satisfazer determinados requisitos para a
respectiva investidura, em especial, deter a condição de servidor
estável na carreira. Tal fator inviabiliza o pronto atendimento da
condição indicada pelos futuros membros da carreira de Defensor Público
do Estado, que serão recrutados no primeiro concurso público e
ingressarão em período de estágio probatório. O legislador estadual,
corretamente entendendo indispensável o requisito da estabilidade,
adotou disposição transitória segundo a qual, enquanto não houver
servidor de carreira habilitado, os cargos de direção serão exercidos
por advogados indicados pelo Governador do Estado, satisfeitos os
requisitos dos 35 anos de idade, notório saber e reputação ilibada. No
texto final, uma emenda do Poder Executivo ao Projeto de Lei, feita a
fim de garantir a independência no exercício das funções, fixou a regra
do mandato por dois anos, admitida a recondução. A norma, além de
transitória, qualifica-se como “especial”, uma vez que regula matéria
peculiar ao ente federativo e às circunstâncias locais. Assim, sua
adoção pelo legislador estadual corresponde ao exercício legítimo de
competência legislativa do Estado-Membro. Com efeito, a organização da
Defensoria Pública das unidades federadas situa-se no âmbito da
competência legislativa concorrente, cabendo à União fixar as normas
gerais e, aos Estados, as normas especiais. É a Informação.Florianópolis, 26 de julho de 2012.
JOÃO DOS PASSOS MARTINS NETOProcurador-Geral do Estado
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